quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O CANIBALISMO (CENA FORTE)


(Artigo dividido em 2 partes. Esta é a 1a.) Façamos um exercício de imaginação. Suponhamos que pudéssemos viajar de um local para outro com muita facilidade. E não apenas isto, mas que também pudéssemos viajar no tempo. Suponhamos, então, que tivéssemos pais bastante preocupados com nossa educação, com nossa formação cultural. Então, em nossa infância, eles nos fariam passar um pequeno período em diferentes países, convivendo com cada povo que existe ou já existiu.
Qual seria o resultado desta experiência? Aposto na seguinte hipótese: quando fôssemos adultos, nada nos assustaria.
Tomemos o canibalismo como exemplo.
vitima de Jeffrey Dahmer
vitima de Jeffrey Dahmer

O serial killer americano Jeffrey Dahmer (1960 – 1994) ficou conhecido como “O canibal de Milwaulkee”. Matou 17 homens, cortou seus corpos, fritou partes e comeu. Chocou quem soube da história. Poderíamos citar outros casos, mas invariavelmente terminaríamos a descrição com “chocou quem soube da história”.
Chocou porque não somos canibais. Porque o ato de comer outro ser humano não faz parte dos nossos costumes.
Porém, analisemos os seguintes fatos, que são bem documentados. Quando os europeus aportaram no continente americano, no século XVI, se depararam com várias tribos, cada uma com seus costumes. Ocupando grande parte da costa atlântica sul-americana estavam os tupinambás. Quando em luta com outras tribos, os tupinambás não se contentavam em matar os inimigos. Também os comiam, ainda no campo de batalha ou posteriormente, em um ritual.
“Um golpe na nuca rompia o crânio do cativo. Acudiam mulheres velhas, com cabaças, para recolher o sangue. Tudo era consumido por todos. As mães besuntavam os seios de sangue para os bebês também provarem do inimigo. O cadáver era esquartejado, destrinchado, assado numa grelha e disputado por centenas de participantes – que comiam pedacinhos. Se fosse muito numerosa a platéia, fazia-se um caldo dos pés, mãos e tripas cozidas.” (levemente adaptado de “O sabor da própria carne”, Ricardo Arnt, revista Super Interessante, edição 119, agosto de 1997)
Chocante? Para nós, talvez. Não para qualquer tupinambá. Não se tem notícia de um movimento do tipo “Abaixo o canibalismo!” naquela tribo.
Poderíamos citar outros exemplos, mas invariavelmente terminaríamos a descrição com “Chocante? Para nós, talvez. Para eles, mais um dia como outro qualquer.”.
Aquela criança que pudesse viajar no tempo e no espaço e pudesse provar ainda cedo de todas as culturas que o ser humano já foi capaz de criar talvez também não se chocaria com Jeffrey Dahmer. Reconheceria ali algo demasiado humano.
Sim, por mais que os costumes de determinado povo nos assombrem, há algo que não podemos negar: todos fazem parte da mesma espécie. Todos são humanos, Homo sapiens.
Cada grupo, historicamente, tomou seu próprio caminho e desenvolveu sua cultura. Se os tupinambás não tivessem sido encontrados e dizimados pelos europeus, é possível que ainda hoje estivessem a comer seus inimigos.
E não é porque um povo não existe mais que deixa de ser uma das possibilidades do que é ser um humano.
Infelizmente não temos como viajar no tempo. Temos condições teóricas de nos deslocar no espaço, mas, na prática, é caro, é trabalhoso. Então somos condenados a passar quase toda a nossa vida totalmente imersos em apenas uma cultura.
Nós, ocidentalizados e tecnologicamente desenvolvidos do século XXI, não somos canibais. Nem amputamos clitóris de meninas, como em vários locais do continente africano. Nem temos a pena de morte por apedrejamento como têm os chineses – que, além de tudo, comem carne de cachorro.
Por isto, tudo quem vem de fora do nosso mundinho nos choca. Tudo é “bárbaro”.
Uma pequena digressão pode ser esclarecedora. Analisemos a origem do significado desta palavra, “bárbaro”. Ela vem do grego, e indicava, originalmente, os povos estrangeiros, isto é, as tribos de fora da Grécia. Em suma, os não gregos. O Império Romano sucedeu aos gregos e foi aí que o termo passou a ter uma conotação de “não-civilizado”. De fato, os romanos eram bem mais desenvolvidos, materialmente, tecnologicamente, que os povos que os rodeavam. Hoje a palavra perdeu seu sentido original (chamamos os que não são de nossa nacionalidade apenas de “estrangeiros”) e manteve o derivado, quer a apliquemos para um estrangeiro ou para um conterrâneo, que pode cometer um “ato bárbaro”, um “crime bárbaro”.
Bárbaro é o que é diferente. Certamente chineses e africanos devem se assustar com muitos de nossos costumes. Mesmo que não nos achem “atrasados”, ou “bárbaros”, devem nos achar estranhos, no mínimo.
Fato é que a humanidade é sinônimo de multiplicidade cultural. E não apenas geograficamente, mas até mesmo dentro de um mesmo povo, visto através do tempo. Vivemos uma época de transições. Algo que até há pouco tempo era visto com naturalidade, hoje já é questionado por muitos e, em pouco tempo, pode ser considerado um comportamento altamente reprovável. Um simples exemplo: a existência de zoológicos.
Não éramos menos humanos quando todos aceitavam que bichos ficassem toda a sua vida enjaulados. Podemos hoje ser mais conscientes, mais isto, mais aquilo, mas isto não torna nossos pais e avós menos humanos, no sentido de ainda serem legítimos Homo sapiens. (A palavra “humano”, como uma infinidade de palavras, tem múltiplos significados. Um deles é a associação com sentidos como “caridoso”, “compreensivo” etc. Não é neste sentido que estamos utilizando-a, aqui.)
A história do Homo sapiens, portanto, é a história de uma miríade de possibilidades culturais. Jung (1875 – 1961) é um dos nomes mais importantes na história da Psicanálise e uma de suas principais idéias é o “inconsciente coletivo”. Esta idéia tem algumas implicações.
Uma delas é o que o romano Terêncio, que viveu no século II antes de Cristo, sintetizou na famosa frase “Nada que é humano me é estranho.”. Temos nosso inconsciente individual, descobriu Freud (1856 – 1939), mas Jung postulou que também somos habitados por algo mais etéreo, mais sutil, que é o inconsciente humano, algo que liga e aproxima todos os humanos, sejamos brasileiros ou chineses.
O que Terêncio e Jung nos dizem, afinal, é que todas as possibilidades residem em nós. Se tivéssemos nascido na China, cães seriam apetitosos. Se fôssemos tupinambás, seríamos canibais.
Assim, Jeffrey Dahmer, ou qualquer outro canibal dos dias de hoje, pode ser visto, se quisermos, como um monstro, uma aberração, um bárbaro. Mas de um ponto de vista cultural e antropológico, o problema dos canibais modernos é apenas um deslocamento cultural. Nasceram na época errada e no local errado.
Chocamo-nos com seus atos porque somos crias de uma cultura não-canibal. E tentamos manter nosso comportamento homogêneo através de leis: sem nudismo, sem ablações de clitóris, sem canibalismo. Para evitar que ovelhas se desgarrem do rebanho, criamos as punições. Entretanto, algumas ovelhas temem menos a dor, sentem mais fortemente o impulso proibido, e resolvem romper com a lei.
As leis já existiam antes de Dahmer e Dahmer as conhecia. Sabia dos riscos e das consequências. Teve de ser punido (15 condenações de prisão perpétua), assim como tem de ser punido qualquer um que transgrida qualquer lei, porque se as leis não forem cumpridas nossa cultura se desmorona. Até mesmo culturas iletradas, como as indígenas, possuíam suas normas de conduta e suas punições.
Dito tudo isto, fica claro que o canibal moderno pode ser visto como um monstro, como dissemos, mas também podemos enxergá-lo de uma forma mais próxima, mais compreensiva. Dahmer não era um macaco ou um extra-terrestre. Quer queiramos ou não, Homo sapiens. Canibal? Sim. Transgressor? Sim, bastante. Louco? Talvez. Mas, ainda assim, humano. Deslocado? Completamente. Seria um tupinambá bem sucedido, mas foi um americano execrado.
Se todo um povo praticava o canibalismo (e não foram os únicos, longe disto!) e este povo era da mesma espécie que nós, talvez exista algo de humano no canibalismo. É neste ponto que queríamos chegar. Talvez exista um sentido no canibalismo.
Talvez possamos entender este sentido, mesmo que de antemão digamos “Mesmo que entendamos, não iremos aceitar isto para nosso modo de vida.”. Talvez exista uma verdade no canibalismo. Uma verdade sobre nós mesmos. Uma verdade que podemos escolher não aplicar em nossas vidas (assim como não escolheríamos uma estrada de terra se para o mesmo destino houvesse uma asfaltada), mas que não deixa de ser verdade.
(continua… Em breve publico a segunda parte deste artigo)
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Saiba mais:
- leia a história completa de Jeffrey Dahmer
- conheça o canibal alemão Armin Meiwes
- assista o programa Índice da Maldade – Canibais e vampiros


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